Gostaria de frisar que aqui apresento questões depois de 9 anos no Atelier do Centro, tanto enquanto discípula, assim como parceira na construção do Méthodo
Começar já com esse item: o discípulo é um parceiro na construção do méthodo e na construção do mestre. Aqui já rompemos com uma ideia centralizadora de poder, onde o professor é o agente ativo e o aluno passivo – rompimento da ideia de um palco ou pedestal para aquele que ensina, e o outro lado para aqueles que escutam. No Atelier, todos “sentam à mesma mesa”. Já posso a partir disso também criar muitos subitens: escuta / agente / poder / rompimento – são todos esses conceitos desenvolvidos diariamente na prática no méthodo (ou melhor, não há dizer “na prática no méthodo”, pois o méthodo em si é a própria prática de algo). Voltando ao foco desse item: não existe professor sem aluno – isto é, o aluno ensina o professor sobre o que ele mesmo é, o aluno no méthodo é fundamental, pois o méthodo não é um sistema de regras fechado, enrijecido, cristalizado, muito pelo contrário, o méthodo é uma tecnologia em constante transformação, uma tecnologia quântica, que se autocorrige, que pode seguir um caminho completamente imprevisível (ou aparentemente imprevisível). O méthodo em si se aprende com o sujeito, seja professor, seja aluno, o méthodo é o organismo vivo que ensina ambos a lidarem com ele, é um fio de Ariadne de retorno de nós mesmos.
Preocupação com hierarquia, ou fim dessa ideia ingênua de “horizontalidade”. Sem uma voz de comando não há trabalho sério – precisamos entender isso não de forma despótica, mas como um próprio mecanismo de funcionamento do nosso organismo fisiológico e mesmo psíquico. Uma voz de comando é extremamente necessária. Sempre há uma voz de comando, sempre há hierarquia, então não vamos fingir que não há. Resolvendo essa questão, as coisas ficam mais claras, mãos transparentes, sem segredo e sem entrelinhas. Somos um país que tem muito medo ou vergonha de falar de coisas óbvias, falar das coisas que são constrangedoras e por isso vivemos em uma constante fantasia.
É importante também delimitar os níveis em que cada um está, para também gerar competição, e a competição aqui não é mesquinha, mas é uma estratégia para se gerar ambição.
O méthodo possui diversas camadas – ele serve tanto para o mestre quanto para um jovem de 15 anos, ele se molda em relação ao sujeito, ele entende as demandas reais do sujeito, ele é orgânico, antidespótico, antiautoritário. O sujeito é quem vai apresentar ao “méthodo” o modo como o méthodo lidará com ele. Sistema dinâmico irregular. Infinitas variantes. Não há um caminho certo, mas isso não significa que há desvairia – um não é o oposto de outro – no meio do caminho entre a norma e a loucura há o méthodo.
Há sim um caminho espiritual. E há sim a possibilidade de se atravessar o fantasma, diria ainda que atravessar o fantasma seria inventar uma nova cultura de si mesmo, seria entrar finalmente na sintaxe do fantasma, seria ser imbuído da potência do fantasma. Há um caminho para isso. Podemos sim ser melhores do que somos, podemos sim fazer passagens, lavar a roupa suja de décadas e décadas de antepassados impregnadas à nossa pele.
O méthodo não é imediatista – é estratégico, tem fôlego.
Escuta: muito importante. Há vários níveis e tipos de escuta (para citar as mais primárias e mesmo assim esquecidas nos dias atuais):
Escuta do outro: sendo ele aquele que se apresenta para fora de você, e não o outro que pensamos ser o outro, não a nossa ideia do outro.
Escuta do corpo: ser capaz de conhecer minimamente seu corpo, entender quando algo funciona e quando algo não funciona. Ouvir quando o corpo está sendo prejudicado, ouvir quando o corpo está pedindo socorro, ouvir quando o corpo precisa parar, quando o corpo precisa de recursos.
Escuta do sintoma: ser capaz de minimamente ouvir quando uma ação é minha ou é da minha mãe, quando é do meu pai, do meu país, da minha insuficiência – ser capaz de escutar as diferentes línguas que falam dentro de mim para eleger a língua que quero falar.
Escuta das demandas externas e escuta das demandas internas — saber diferenciar uma da outra.
Escuta do que o outro está realmente pedindo ou dizendo — o outro diz algo mas o dizer é ainda somente o display para outra coisa que está querendo ser dita. Em pedagogia, esse tipo de escuta é extremamente importante – mas só somos capazes de escutar o que o outro está mesmo pedindo se formos capazes de escutar ou eleger o que nós mesmos estamos pedindo de nós.
Claramente há algo insustentável nos tempos atuais – o ser humano não tem mais motivação, o ser humano não tem motivo para viver – há um problema sério aí – e me parece que para lidar com isso o homem está criando artifícios para ocupar o seu tempo de vida, o homem está ocupando um espaço vazio ao invés de consumando um tempo de vida, ao invés de consumando o próprio vazio consigo mesmo — a pedagogia tem que ser uma arma violenta para atacar esse mal – a pedagogia tem que lidar com questões reais do homem, principalmente do homem que em breve perderá muitos de seus empregos por robôs. O artifício para ocupar o tempo do homem, ou, o “emprego para sobrevivência” chegará a um fim – se não formos muito rigorosos em entender o tempo em que nos espera, ficaremos pra trás de nós mesmos, essas questões que se apresentam hoje só se agravarão no futuro. O próprio futuro está colocando o homem contra a parede e pedindo para que ele resgate o espírito.
Ser capaz de falar de coisas pessoais, ser capaz de ter distanciamento e falar dos podres – falar do podre é o início para se limpar do podre – assumir o podre, assumir o mal cheiro. Assumir o mal cheiro é colocá-lo para fora e ao colocá-lo para fora um espaço está sendo vago para questões impessoais, para vínculos com o ofício.
Tríade: o pré-gato — o gato — pós-gato // realmente adentrar o estágio do gato e suportar esse lugar por anos já é estar em um nível muito alto – investir em destrinchar melhor o que é o gato. O gato é o “drible na pequena área”, como disse RES – sendo a pequena área toda a nossa condição em relação ao nosso país, nossa herança genética, nossos traumas, driblar essas questões que sobraram para nós driblarmos em um espaço de tempo muito pequeno que é uma vida – como driblar essas questões? Como atravessá-las? Qual a estratégia? Atravessá-las para onde? O que sustenta esse atravessamento? Qual o artifício? Qual o bote que usaremos nessa travessia? Qual o bote que cada um terá que criar? Alguns podem construir um bote, e outros podem construir um navio – mas quais mesmo têm os recursos para não naufragar nas tempestades dessa travessia?
Organização — se algo for vazar, tenha o lugar certo para vazar — dar nome aos bois, não se enganar, ser duro consigo mesmo, ser cruel consigo mesmo.
Capital — criar um próprio capital. Ganhar dinheiro não relacionado a ter um dinheirinho para sobreviver, mas ganhar dinheiro significa uma troca de riquezas. Ganhar dinheiro significa realmente valer algo, significa ter valor, construir um corpo, estar incorporado de uma moeda – fazer um bico não é ganhar dinheiro. Ganhar dinheiro é construir um corpo externo que enfrente o mundo. Ganhar dinheiro é construir um barco que tenha recursos para não naufragar na travessia.
Diferença fundamental entre o méthodo e “terapia”: não há uma questão moral no método, ou seja, as questões são tratadas aqui de forma sem moralidade, sem automatismo, e com uma vontade profunda de des-alienação. O que quero dizer é que não se trata de seguir à risca “normas”, e entender que fazer uma coisa não é melhor que fazer outra coisa; mas entender porque uma coisa funciona e outra não, isto é, onde a relação de uma pessoa com a escrita está entrando? Onde a relação de uma pessoa com o álcool pode entrar? As questões do méthodo são muito pouco determinísticas e por isso muitas vezes podem soar contraditórias para quem as ler de forma leviana. A questão é que a pedagogia na vida de um sujeito tem que entrar de forma orgânica – tem que haver sentido na vida do sujeito. E cada um é diferente do outro. Uma coisa que funciona para um pode não funcionar para o outro — mas considero de extrema importância esmiuçar as diferenças do méthodo para uma “terapia” – assim como a diferença de arte para “arte terapêutica” — não há nada de terapêutico no méthodo, muito pelo contrário, acredito que o méthodo busca “criar novos traumas para enfrentar traumas antigos” – sendo os novos traumas a obra. O trabalho de arte tem que ser a construção de um novo trauma.
No méthodo não há “apaziguamento” das coisas, muito pelo contrário, há guerra – o méthodo é uma ferramenta para poder ir para guerra.
Qual a diferença do méthodo e do Atelier do Centro? O méthodo é uma ferramenta para se operar dentro do Atelier do Centro – mas o Atelier do Centro não é um espaço na Rua Epitácio Pessoa, na verdade o Atelier do Centro tem que estar dentro do sujeito, portanto o méthodo é uma ferramenta para se operar dentro do sujeito. O Atelier é um rasgo, uma fratura, uma fratura fundamental no sujeito. O méthodo só serve para aquele que está fraturado, para aquele que está sangrando, para aquele que não tem mais saída.
Principalmente em relação a essa última aula de Gell sobre RES e Duchamp, sobre o gozo de começar a criar um fôlego para que a própria energia do estudo comece a criar um movimento próprio e assim entrar em uma zona interessante de possibilidades, isto é, de inferências, quando o estudo se transforma em uma ferramenta de pensamento, uma ferramenta para uma engrenagem funcionar, como um lubrificante de uma engrenagem. Há um fascínio em descobrir massas negras de mim ainda não descobertas, e perceber que há vida habitando elas – mas é necessário animar tais vidas de alguma forma, isto é, criar novos displays de mim para que essas tantas vidas sejam animadas. Sozinha é impossível.
Sempre desconfiei do que eu entendia do Duchamp, inclusive, do que achava já ser “profundo” de minha compreensão, sabia que essa suposta compreensão profunda não era capaz de manter tão solidamente um homem enquanto divisor de paradigmas na história da arte ocidental. Desconfiava disso que dizem ser a “manobra de Duchamp”, principalmente pois penso que uma manobra genial continua se desenvolvendo com o tempo, ele é como um organismo vivo, que vai se organizando de forma inesperada junto com as tantas variantes do tempo. Uma manobra genial é como uma máquina inteligentíssima, um computador quântico, que pode acabar respondendo de forma que escapa de nosso controle.
Me dei conta de que Duchamp foi desenvolvido até certo ponto; foi um artista que podemos observar como uma porta que se abriu, ou como ele mesmo fez, um buraquinho pelo qual se olha dentro (Étand Donné), e descobre-se todo um novo universo por vir. Ainda não descobrimos de fato (ao menos no que se diz por aí) a obra de Duchamp, isto é, o objeto em questão, o objeto material que ele lançou no mundo; acredito que seja possível ainda ir muito além do que já fomos, é uma obra que se desdobra de muitas formas. E é aí inclusive que percebo o início de uma profunda relação na obra de RES e de Duchamp. Acho que no geral, um artista poderoso produz uma obra que possui um impensado, isto é, possui uma aura que é maior do que o próprio artista poderia acreditar que ela teria; ele circunscreve um espaço com sua vida, e esse espaço desenvolve então uma vida própria. O espaço cercado com a obra de um grande artista passa a possuir uma vida que é muito maior que a própria vida do artista, e por isso, tal obra pode sobreviver ao tempo. Há então aqueles outros, que podem inferir da obra de um artista, podem amar a obra de um artista, quererem estar no mesmo lugar dessa obra, mas acabam por deixar escapar o que há de mais precioso dessa obra: uma vida que continua em desenvolvimento após a morte do artista, algo que foi salvaguardada pelo artista que permanece respirando mesmo sem sua presença física – é como se sua fisicalidade tivesse sido relocada para a obra, e por isso, como um corpo – nesse caso, não biológico – a obra continua se desenvolvendo sozinha, possibilitando, assim, uma possível imortalidade. O artista cria uma vida poderosa o suficiente para permanecer existindo e se desenvolvendo eternamente mesmo depois de sua morte. Isso em si, já é muito além do que pensamos ser “a manobra”.
Percebo isso fortemente no caso de Duchamp, apreendo sua obra como um sismógrafo muito sensível ao tempo futuro, quase como uma carta que foi endereçada a um tempo que não era dele, lançada em uma garrafinha ao mar, para que alguém a pegasse e fosse capaz de pensar o seu próprio tempo – tempo este futuro não somente de Duchamp, mas um tempo que sempre estará à frente de nós. Quem sabe isso também constitua a manobra de um grande artista e de uma grande obra, que tem o poder de se alterar conforme o tempo for passando, ela nunca se torna obsoleta em relação aos tempos futuros que a esperam.
Duchamp foi muito sensível em captar a miséria do homem, e ainda, em entender como ela poderia se agravar com o display da arte – isto é, um dia arte foi um display possível para o homem ser um ser humano melhor, mas me parece que hoje esse display mudou de lugar, e acredito que Duchamp tenha pressentido isso vigorosamente, ou ainda, Duchamp sabia que arte não se tratava do display que pensamos ser arte, a arte vai criando o seu próprio display para existir, da forma como ela bem quiser. É interessante pensar como um artista, ou um homem sério também sabe dos seus limites, até que ponto ele pode ir para realmente ter um poder real de mudança social, mudança matérica no mundo, e não somente o “poder” de fazer um trabalho – um grande artista está na ficção, então, por mais absurda que possa ser uma ação, ela transita entre a sintaxe ficcional e o tempo atual, sendo assim, tudo menos um delírio – o grande artista inventa a partir das leis desse mundo, uma nova configuração das leis para poder existir, para poder dar o testemunho e permanecer vivo.
Quando Duchamp diz “prefiro respirar a trabalhar”, claramente o que ele está dizendo é que ele prefere trocar com o mundo ao invés de impor coisas a ele. E ao trocar com o mundo, ao dialogar, ao negociar com o mundo, ele pode mexer de fato no mundo. Esse é o primeiro ponto em que percebo um desenvolvimento muito palpável da semelhança de Duchamp com RES. RES hoje aprende vendo o mundo, aprende no exercício de diálogo com o outro, com o outro do outro, com o futuro inclusive do outro – poder agenciar tal fala que depois de anos pareça começar a fazer sentido. Onde a fala, nesse caso, é como uma carta endereçada a alguém que ainda não existe, mas a partir do momento em que a fala é proferida, ela já é uma projeção, uma prospecção dessa pessoa que está por vir, quem ouve a fala é um tempo futuro meu, sou eu em estado de futuro de mim. Uma fala muito matérica. Uma fala-transformação.
Ambos não estão interessados em dizer para esse tempo, dizer para esse tempo agora, ainda que o momento presente seja tudo que eles têm para ser consumado. É uma fala também endereçada ao tempo necessário para resgatá-la, tanto o tempo necessário de cada sujeito, quanto o tempo necessário do próprio mundo, o mundo tem o seu próprio tempo necessário de assimilação. Acredito que RES seja, dessa forma, uma exigência do tempo para receber essa carta; chegou a hora em que a carta precisava encontrar um receptor. Tem horas que algumas coisas parecem precisar existir, e é com esse tempo que a fala de RES e de Duchamp dialogam e se encontram. Há um encontro em uma grande mesa redonda de muitos homens dialogando juntos com o tempo; e RES também, muitas vezes inventa essa hora futura necessária de existir no próprio presente. A própria urgência de sua fala faz com que eu encarne o meu próprio tempo futuro para recebê-la. Quem sabe isso já seja um elemento que Duchamp não tinha – quem sabe isso não era uma questão de seu tempo – mas acredito que esse elemento de RES diz respeito à urgência desse tempo mítico para a sanidade do homem.
Assim como os cientistas inventaram um ambiente ideal para que fosse possível o desenvolvimento de um computador quântico, “Somente nessa temperatura (272,99°C) é que as propriedades quânticas dos materiais se manifestam1”, RES inventa esse tempo futuro urgente em sua fala, inventa as condições ideais para que “suas propriedades quânticas se manifestem”, não somente suas, mas acredito que sua pedagogia, seu méthodo esteja fundamentado nessa invenção de condições ideias e novas para que propriedades em latência do sujeito possam se manifestar. Assim, sua fala possui uma carnatura, possui sangue circulando por entre as palavras, não é uma fala que diz algo, mas é o próprio tempo de compreensão, de corpo maduro de mim rasgando o meu tempo presente para que alguma coisinha possa começar a entrar. É mesmo como uma violação, uma violação de um lugar receptivo de fala; ele convoca uma agência em meu corpo para receber sua fala, e desse modo não a recebo passivamente, mas já estou me agenciando no próprio ato de ouvi-la. Ouvi-la é um processo de agenciamento em meu corpo, um processo ativo diante da vida. Quem sabe seja essa a manobra descrita por tantos críticos e teóricos e pelo próprio Duchamp relacionada à 4a dimensão em sua obra – ainda que todas as abordagens foram de modo muito descritivo, acredito que RES assimila essa 4a dimensão no momento em que ele convoca o próprio ato de comprometer-se ao falar, isto é, no momento em que ele devolve a carne ao verbo. Estabeleço essa relação principalmente por conta do que ambos foram capazes de articular, de movimentar, da capacidade de “gerar calor” de ambos no ocidente, na prospecção de um novo homem. É como se houvesse um diálogo profundo no objeto em questão de ambas as obras.
Os meios de transmissibilidade e elaboração teórica de uma articulação tão profunda como a de RES e a de Duchamp são realmente escassos, principalmente pois ficou claro para mim que a “manobra de Duchamp” está mais para uma manobra ritualística dentro das leis do ocidente, do que necessariamente uma manobra institucional ou da “descentralização do objeto de arte”. Apesar da manobra de Duchamp passar (ter que necessariamente passar) pela nossa “instituição de arte”, ela dialoga com instituições muito mais complexas e não necessariamente “oficiais da arte”, e sim com instituições oficiais do homem e de suas relações nesse planeta.
Acho perigoso pensar a manobra de Duchamp como simplesmente a ideia da “descentralização do objeto”. Estamos muito apegados a uma ideia de objeto, e é urgente mesmo um trabalho de desfamiliarização dessa ideia tão limitada que temos de que o objeto é a pintura, o desenho ou o mictório. Inclusive, no caso de Duchamp, nem acho mais que o “objeto em si” seja a manobra, mas a “manobra” foi um dos preços que ele teve que pagar para poder gerar calor nos intervalos de suas relações. A manobra foi mais o display para o objeto, do que propriamente o objeto em questão.
Ainda sobre a descentralização do objeto: não significa que a manobra seja mais importante que o objeto – acho que esse viés de conclusão da obra de Duchamp está muito equivocado. O objeto sempre será fundamental, a questão é a de identificar do que se trata mesmo o objeto. O que é a coisa que chamamos de objeto? Quem sabe, anteriormente a Duchamp o objeto é que estava descentralizado, ou então reduzido a uma superfície bi, ou tridimensional. Acredito que Duchamp resgatou a possibilidade de vermos um objeto que está lá o tempo todo, mas que é invisível para os nossos olhos.
“O que nos parece um paradoxo ou contradição para nós é na verdade uma miopia no modo ocidental de pensar”.
Holger Kalweit em Shamans, Healers and Medicine Men.
Tradução feita por Anna Israel
Acho que, assim como Hilma af Klint, que foi uma esotérica, não sabemos nada do que foi mesmo a obra de Duchamp, tampouco sabemos ao certo sobre a obra de RES – são coisas que vão permanecer atuando profundamente no homem ao longo do tempo, ainda que não saibamos ao certo como, ou por quais vias.
Por isso, finalmente posso esboçar um pouquinho da minha inquietação diante dos desenhos de RES, bem como de sua manobra, já que não se tratam de desenhos que não sabemos ao certo como foram feitos, mas de “desenhos” que estão sendo feitos naqueles momentos em que nem suspeitamos estar havendo ação, desenhos que acontecem na tessitura dos nossos sonhos, desenhos que cerceiam o que nos é oculto, mas ao mesmo tempo terreno, o que é imaterial, mas absolutamente material; desenhos que proporcionam uma outra dimensão de se relacionar com a vida.
Futuro jovem artista,
Você deve ter ideias grandiosas sobre seu futuro sucesso. Ninguém com pequenas ambições e objetivos vagos chegou a ter muito valor nesse jogo.
Desde pequeno, eu sonhei em fazer parte dos grandes artistas em que os trabalhos inspiravam os jovens a falar: “É isso o que eu quero fazer… Eu quero fazer algo assim!” Eu queria que o meu trabalho estivesse em coleções de museus, não queria ficar indo aos museus para ficar vendo somente os trabalhos dos outros. Eu só queria que a minha formação na escola de arte tivesse sido rigorosa o suficiente para preparar o meu caminho para isso. Quando eu terminei a escola, eu senti, como se sente normalmente, a mercê de autoridades misteriosas que eu desconhecia, e de forças que agiam muito além do meu controle. Eu tinha feito alguns exercícios, e fiz algumas coisas aqui e ali, mas nunca sentia que realmente aprendia alguma coisa. Esperança e fé eram basicamente tudo que eu tinha para continuar. Não havia nada para se almejar, nenhum trabalho para seguir. Era-me dito: “Não há nada que você possa fazer. Cale a boca e faça seu trabalho… Eles vão te avisar se você alcançou a nota esperada.” Essa configuração não é confiável, e é totalmente inaceitável. Nunca entregue seu sonho ao acaso, sozinho1.
Obviamente, eu fiquei bravo e amargo quando terminei a escola. Sentia que haviam lições importantes e concretas a serem aprendidas, mas poucos professores pareciam dispostos ou capazes de passar essa informação a diante. Nesse aspecto, eu entendo uma coisa ou outra. O que eu aprendi com a escola me dá muitos motivos para ter bastante discernimento em relação às pessoas com quem eu compartilho esse conhecimento. Sua carta não me fornece nenhuma informação específica sobre a sua identidade. Eu não fazia a menor ideia de quem você era. No entanto, o seu apelo parece bastante genuíno, então apesar de algumas reservas, vou me arriscar e te dar uma chance.
Você está há pouco menos de um ano fora da escola, então o que você deve estar experienciando são sintomas de abstinência, não muito diferentes daqueles associados a drogas alucinógenas. Você estava em uma bad trip, e vai demorar um pouco para se conectar com a realidade. Há, porém, algumas coisas que você pode fazer, algumas técnicas que funcionaram comigo, para minimizar a confusão e o trauma.
Escolas de arte são um pouco como “becos de crack”. Quando você está lá dentro, o ambiente parece acolhedor, tudo lá parece notável já que todos estão dividindo o mesmo cachimbo. No nevoeiro inebriante do diálogo e da crítica, as menores conquistas são acentuadas. Você começa a acreditar que coisas que você faz tem valor simplesmente porque você as fez. Seus amigos todos te apoiam, eles ‘curtem suas coisas’. “É tudo muito interessante, um belo trabalho”. Desconfie desse papinho. No mundo sóbrio, no mundo lá fora, ninguém realmente se importa. Aqui, no mundo real, você tem que conquistar atenção, e o espaço reservado para o reconhecimento e a celebridade é curto e estreito, sem a menor dúvida. Em todo caso, você inalou muita merda, e agora é hora de assoprar a merda para fora e ir para a reabilitação.
Reconhecer o delírio é o primeiro passo em direção à recuperação, e, mais provável que não, uma carreira bem sucedida como artista.
Ninguém com um ego pequeno entra nesse jogo.
Tudo não está OK!
Sempre escolha assuntos que te interessam.
O oponente é a subjetividade.
Artistas não são mágicos ou xamãs, profetas ou videntes. Nós fazemos coisas, e os dispositivos que usamos para ‘transfigurar o lugar comum’ são reconhecíveis. Isolar, re-contextualizar, transformar a escala, inverter, etc. O ‘status especial’ da arte tem mais a ver com sua relação com poder e dinheiro do que com qualquer atributo inerente a ela2.
Todo dia no atelier é um passo em direção a ser tudo que você pode ser. Marcel Duchamp pensava o atelier como um ‘laboratório’. Adote esse conceito. Resolva problemas concretos. Inspiração é produzida pelo trabalho.
Simplifique, Simplifique, Simplifique. Force relações entre coisas que parecem ser incompatíveis3. Se elas fundirem, talvez você tenha encontrado algo fresco, algo novo. Esse procedimento deveria ser executado com a precisão metódica de um engenheiro químico.
Fique atento para a função de seu trabalho, seu desempenho dentro de um determinado gênero4, ao invés de seu significado. Não é o assunto em si que importa, é o tratamento que importa.
Nomeie sua ambição. É preciso que esteja claro o que é que ‘Artistas’ fazem. E em seguida perguntar, que tipo de ‘Artista’ você ser, e o que é que você quer conquistar em um campo específico.
Sempre compare seus esforços com o que parece ser criticamente favorecido em seu tempo; o que está sendo alegado que os insere em um status privilegiado.
Distinga-se da multidão. O melhor pedaço de crítica que já recebi foi que algumas colagens de mídias distintas do começo de minha carreira eram agradáveis e atraentes, mas sumiam nas massas de coisas que eram iguais a elas, o que Barthes chama de o ‘studium’, ou de uma categoria não considerável de imagens e objetos.
Você entendeu perfeitamente a importância de uma consciência histórica. Apesar de que isso não deve se limitar aos objetos de arte somente, mas incluir a consciência das circunstancias políticas, econômicas e sociais sobre as quais seus fabricantes trabalharam5. Isso pode ser uma força catalizadora e fornecer uma base para uma missão com propósito6. Por exemplo: Como um Afro-Americano, descendente de um povo escravizado para servir os interesses e venefícios dos “Brancos” dominantes, eu estou bem ciente da fragilidade e fraqueza da minha posição no mundo mais amplo, e mais ainda na estrutura institucional do mundo da arte. Nós não estávamos presentes na criação. Os negros não estavam envolvidos na codificação dos termos do ‘Mundo da Arte’, assim como não estavam envolvidos na assinatura do Tratado de Versailles quando as potências ocidentais e a Rússia dividiram a África em suas províncias de influência. Como os ‘recém-chegados’, nós ainda não controlamos instituições independentes o suficiente, muito menos os recursos de capital para montar um desafio competitivo para o ‘mainstream’. Pessoas que vêm de fora não podem assumir nada como garantido em um campo tão subjetivo7.
Se você é negro, você já está começando de trás8.
Como os Japoneses afirmaram, oitsuke, fechar a distância, e oikose, ultrapassar os brancos, enfraquecer, assim, o domínio que está nas mãos do “Branco”, é o desafio que enfrentamos. Levou um tempo, mas eu finalmente me dei conta de que não estamos na corrida juntos. Se seu reconhecimento depende da simpatia e da generosidade dos outros, você está em um mundo de muito perigo, meu chapa. Há uma competição acontecendo. O mundo da arte não é uma igualdade de condições. No entanto, se você vai jogar, você tem que jogar para valer, e jogar para ganhar.
Um artista é um profissional do mercado como qualquer outro. São necessários tremendos recursos e um bom contador para ter fôlego o suficiente na prática para poder evoluir e se estabilizar.
Só o tempo que vai fazer uma avaliação significativa e realística das conquistas de cada um.
Não há cronogramas de trabalho que já previamente garantem o sucesso de uma carreira, então tenha paciência. A urgência que te move, que te propulsiona para ir até o atelier todo dia, deve ser o desejo de ver figuras que ainda não foram realizadas9. Se é aí que seu coração está, integridade não será uma questão.
Sinceramente,
Kerry James Marshall, Chicago
A questão é que não se trata de aprender a fazer as coisas, ou aprender uma coisa ou outra coisa. Acho que queremos muito aprender a fazer as coisas, quis muito ter um ofício, quis escrever, quis ler, quis pensar, desenhar, esculpir, ser uma grande mulher, mas a questão é que não se conquista nenhuma dessas coisas quando se quer qualquer uma dessas coisas. A questão que importa profundamente, que estabelece uma mudança crucial de comportamento é: como vou fazer essas coisas, como vou fazer qualquer coisa? Como vou me fazer no mundo? Como vou me fazer? Como vou me articular através das coisas, qualquer uma que seja, que eu faço? Não se trata de aprender a escrever, mas de como vou aprender a aprender escrever? Não se trata da escrita propriamente, não pode ser esse o fim, mas a escrita, no caso aqui é o processo e não o fim, a escrita é o processo, o artifício pelo qual vou caminhar em direção a como estarei eu me fazendo no mundo, como estarei eu me fazendo nesse pouco tempo que tenho de intermitência do meu batimento cardíaco?
Hoje entendi que “cuidar da fritadeira” foi o comecinho da minha investigação do diagrama “autópsia do real” de RES. Isso porque cuidar da fritadeira não era somente limpá-la, mas investigar quais seriam as articulações e providências necessárias para esse cuidado? A manutenção é o que mais importa, isto é, não importa ser gênio, não importa ser atravessado pela ninfa, mas qual a manutenção necessária que terei de fazer uma vez que sou atravessado? Qual a manutenção de mim necessária que terei de fazer uma vez que me foi dado o privilégio da vida? Ou ainda muito mais profundo (voltando para o lugar que tenho dificuldade), o que é mesmo cuidar de uma fritadeira – o que é mesmo a fritadeira em questão? Será que no fundo, a fritadeira não sou eu?
Realmente, finalmente entendi quando Fernando Pessoa diz que não há metafísica maior que comer chocolates: não há metafísica maior que limpar uma fritadeira. Ir e voltar de uma loja em uma região decadente de 1,99 atrás de potes de vidro para guardar os 4 litros de óleo… E quando achei que a tarefa estava enfim finalizada, com um enorme sorriso no rosto de tarefa cumprida, o pote de vidro escorrega da minha mão em frente à bancada da cozinha: que ingenuidade, a tarefa nunca está cumprida.
Talvez o que eu tenha entendido sobre o pote de vidro ter caído no chão e quebrado é que nenhuma tarefa nunca está mesmo cumprida. Esse é um dos motivos pelo qual Rubens vive diariamente na urgência. Não existe essa ideia de tarefa cumprida – essa ideia é para os fracos, para aqueles que querem pouco da vida e de si mesmos, para aqueles que vivem com uma ideia de finalidade das coisas, para aqueles carentes! O pote de vidro sempre vai quebrar no final da jornada. A pedra de Sísifo no final da montanha vai rolar montanha abaixo de novo. É um trabalho diário e constante de manutenção não da fritadeira, mas entendo bem mais profundamente, de manutenção de mim mesma e do desejo! Se não houver esse tipo de manutenção, o desejo vai criar outras formas para existir, vai se sorratear pelos becos sombrios de mim, e aparecer de maneira indesejada. Entender que o pote de vidro sempre vai cair no final da jornada é finalmente ver que minha vida está e estará toda por fazer.
Talvez o que me tenha ficado também mais claro hoje para mim é que não se trata mesmo de resolver a porra do óleo da fritadeira. Não existe fritadeira. Como não existe diagrama da autópsia do real. São todos a mesma coisa. Eu estabelecer uma diferença entre um e o outro vai fazer com que eu me relacione mal com ambos. Ou melhor, é o que justamente está acontecendo! O que está acontecendo não é que eu estou me relacionando mal com meus estudos, com a minha produção, o problema não está aí. O problema é que por estar me relacionando mal com as pequenas coisas como o pote de vidro para o óleo, isso vaza para qualquer outro lugar da minha vida, pois isso, o pote de vidro do óleo, é justamente todos os lugares da minha vida! A minha vida é um pote de vidro que preciso ir na loja de 1,99 comprar para guardar o óleo!
Dá pra entender inclusive mais porque o primeiro grande místico na Alemanha, Jacob Böhme era sapateiro. Ele na verdade nunca fez mística, ele só fazia sapatos muito bem! Possivelmente se alguém falasse para ele que era um grande místico, ele não entenderia nada!
E é por isso que hoje eu não quero ser artista coisa nenhuma, nem crítica, nem escritora, nem nada disso. Eu só quero ser capaz de cuidar bem dessa fritadeira.
Parte I
Quero falar sobre o trabalho “trabalho de arte”. Falarei disso que chamo de “acesso“2, do atelier, amigos da arte, e o temperamento artístico3, mas quero que fique claro que estou falando o tempo todo sobre esse trabalho. Esse trabalho é muito sério, principalmente levando em conta isso que tentarei mostrar quando falarei do acesso. Na verdade, o trabalho é muito mais importante do que nós.
Algumas vezes, em minha cabeça, eu me coloquei muito como superior ao meu trabalho, e sofri muito, como consequência. Pensava o tempo todo só em mim, era só “eu, eu, eu, eu” e sofri, e o trabalho sofreu, e com isso, sofri ainda mais. Pensava que eu era importante. Fui ensinada a pensar que o autor é grandioso e que o trabalho não importa. Agora vejo “a coisa toda” de maneira muito diferente.
Pensar que o autor é grande e que o trabalho também é grande, esse posicionamento vaidoso não é possível; e também, pensar que sou pequena e que o trabalho é pequeno, esse posicionamento modesto também não é possível4. Continuarei falando do acesso e quem sabe assim a única posição possível se esclarecerá.
Ao descrever o acesso, não quero dar margem para ninguém pensar que estou falando de religião. O acesso é um momento muito feliz que nos assalta.
Muitas pessoas ficam tão assustadas por um momento de acesso ou no estado que conduz ao acesso – que é tão diferente do estado que estamos no nosso dia a dia –, que por isso pensam que são únicas.
Acho que isso não poderia estar mais distante da verdade. O caminho do acesso está aberto o tempo todo para qualquer um que não esteja com a mente entupida com pensamentos, e preocupações, portanto o acesso é experimentado por todos, quer eles percebam ou não. É uma coisa que insufla5, mas não é uma coisa que podemos manipular, é somente um estado que nos atravessa; não é um poder6, é um estado de paz e de consolo – até para os animais e plantas.
Não pense que o acesso é uma coisa sua, se fosse algo somente seu então ninguém seria capaz de se comover com seu trabalho. Não pense que é algo reservado para poucos ou qualquer coisa do tipo.
É um estado de mente limpa, vazia, livre de picuinhas. Claro que sabemos que um estado de mente vazia não dura o tempo todo, então diríamos que o acesso vai e vem, mas ele está lá o tempo todo esperando que estejamos disponíveis (com a mente limpa) para ele de novo. Portanto, podemos dizer que é insuflado.
Crianças tem mais momentos em que elas estão com a mente vazia (de picuinhas) que adultos. Elas estão, portanto, mais disponíveis ao acesso que os adultos.
A soma desses momentos de acesso resulta nisso que nos referimos como “sensibilidade”, e é a coisa mais importante, igualmente, para adultos e crianças, apesar de ser muito mais possível para crianças.
Alguns pais colocam o desenvolvimento dos passos sociais à frente do desenvolvimento estético. Crianças pequenas são levadas ao parque, levadas a escolinha primária, e assim direcionadas à um começo – mas aquela criancinha sentada sozinha na sujeira e esquecida é aquela que naquele momento está mais aberta ao acesso e ao desenvolvimento da sensibilidade.
Parte II
O acesso esquiva-se o tempo todo, é algo que não pode ser ensinado ou administrado de modo algum. Não é possível o manipular, muito menos o controlar. O acesso é fora da lei.
Quando crianças perguntam – “o que devo brincar”, você deve dizer que não sabe, não se importar em responder esse tipo de pergunta, possibilitando que elas sejam independentes nesse lugar.
O que é a experiência da criancinha sentada na sujeira: ela de repente é assaltada por uma felicidade, sente-se livre, ri, e corre, e cai. Sua face brilha – estou certa que você já deve ter visto isso.
“A luz era extraordinária, era um sentimento extraordinário”, é o modo que muitos adultos estão descrevendo momentos singelos de acesso. Apesar de o terem por toda suas vidas, não dão muito valor a esse tipo de momento, e são sempre pegos de surpresa1.
Os adultos são muito ocupados, lhes foi ensinado a estar o tempo todo correndo.
Mas não dá para estar na correria e ao mesmo tempo no acesso.
Há tantas coisas ditas e pensadas sobre as relações, esse é um dos motivos porque pensei que deveria falar um pouco sobre o acesso – que não tem nada a ver com essas relações e com o pensamento2.
Somente quando as relações são gastas e quando o pensamento se mostra insuficiente, estamos no que diz respeito ao acesso.
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Seu caminho está embaixo dos seus pés, queira você perceba ou não. Essa é a coisa mais importante que vou dizer, mas não vou me alongar sobre isso, você não entenderia mesmo, quanto mais eu falo, mais a coisa se distancia.
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Se você for na direção do acesso e todos os artistas também fossem, é necessário dizer que teríamos que abrir mão do poder das nossas decisões.
O trabalho de arte não é um processo intelectual, certamente já devem ter ouvido isso antes. “Não ser um intelectual” e “abrir mão do intelecto” são entendidas como duas coisas distintas, quando na verdade estou dizendo que são a mesma coisa.
Mal podemos suportar a ideia de abrir mão do intelecto. “Ser uma pessoa inteligente” parece ser a única coisa que ouvimos desde que nascemos.
Mas o caminho da intelectualidade e o caminho do acesso são dois caminhos incompossíveis3. Se você é mesmo um artista, o caminho intelectual tem que ser sacrificado.
Parte III
Um trabalho realmente do acesso não tem nada a ver conosco, não se trata de um trabalho sobre “eu”. Realmente quero enfatizar esse ponto. Um trabalho de arte do acesso não é um simples trabalho artístico do artista. Se o acesso só é possível quando não mais estamos no comando – e é isso mesmo –, então realmente é como um presente, uma invocação, e não algo que se adquire deterministicamente da própria experiência, melhor ainda, não é algo de nossa posse.
Quase todos pensam que arte nasce da experiência do artista, e isso significa: da experiência adquirida intelectualmente. Pensam que esse fenômeno arte é afetado pelo lugar que você mora, ou pelo que você faz. Mas o trabalho mesmo de arte não tem nada a ver com a biografia do sujeito, com suas habilidades características, com seu conhecimento, não tem a ver com nada disto.
O acesso é o início, o meio e o fim.
Aqui de novo, devo enfatizar que você já teve muitos momentos de acesso, os quais passaram despercebidos, pois você está imerso em uma ideia intelectual da vida, vivendo a vida de forma intelectual, sendo ensinado e acreditando completamente e somente na vida das evidências, o que pode ser provado pelo seu modo particular de ver.
A dependência no intelecto é tão inteiramente o que é ensinado que algumas pessoas associam a ideia de parar de pensar com a morte. Quase todos pensam que seria algo muito perigoso e alguns creem em que isso levaria a uma dissolução da sociedade. Mas há aqueles que dependem do acesso, mesmo se considerando intelectuais. Dessa forma, quando essas pessoas têm que tomar uma decisão, elas vão dormir na esperança de que quando acordarem, saberão o que deve ser feito, e assim prosseguem.
Essa é a diferença. Um intelectual decide baseado nas evidências que tem, mas outros respondem a alguma coisa que lhes escapam.
E aqui devo dizer: superstição é o maior inimigo da arte, é pior que o ego. Superstição é uma crença em poder ou poderes, é uma crença de que esse poder pode ser adquirido por você. Você então, uma vez que lhe foi concedido poder, está em uma posição muito poderosa.
Alguns artistas caem na armadilha de pensarem que com o acesso, foi-lhes concedido poder para conduzirem o mundo para fora das trevas, o “complexo do messias”. Ele então se coloca como uma grande unidade necessária para a salvação da humanidade. Isso é completamente equivocado. Esse é um caminho certamente equivocado, mira um caminho muito problemático.
Por favor, eu te imploro, tente não pensar “eu, eu, eu, eu”. Confie em mim, você nunca terá nenhum poder.
Se o outro não respondesse ao seu trabalho com sua comoção, e devolvesse ao trabalho também um pouquinho do que o trabalho tem de acesso, o trabalho estaria morto e você não existiria1.
Nós não somos os instrumentos do destino, tampouco somos os poderes do destino. Nós somos meros materiais do destino.
Por favor, lute contra a coisa do messias, se você se coloca como uma grande coisa útil, então você se desliga do acesso, que depende exclusivamente do inútil.
Eu não digo que é algo possível de ser feito o tempo todo, pois somos mesmo muito selvagens, naturalmente, mas tente estar alerta para essa questão do poder.